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quarta-feira, 19 de junho de 2013

E agora José (Versão #nãoéapenaspor20centavos)










Texto criado em cima do célebre poema de Carlos Drummond de Andrade, contextualizando o momento atual que o Brasil vive, onde depois de décadas mantendo a cabeça baixa e os ouvidos fechados, o povo decidiu tomar atitude, sair de seu comodismo célebre e lutar por seus direitos de maneira verdadeira.




E agora José 

E agora, José?
A festa acabou,
o povo acordou
a luta assumiu,
paciência esgotou,

e agora, José?
e agora, você?
que escreve no face,
que reclama e clama,
você que faz versos,
que ama, protesta?

e agora, José?

Está sem trabalho,
está sem transporte,
está sem dinheiro,
já não pode viver,
já não pode estudar,
quer sair, mas não pode,
o discurso escutou,
a promessa não veio,
segurança não veio,
a saude não veio,
não veio a escola
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

Aguentou muito tempo
Esperando as mudanças,
Esperando e não veio
a mudança era engodo
o sorriso, irônico
de sua estupidez,
sua ignorância,
seu medo – e agora?

Eles tomaram sua mão
manipularam as idéias,
te sufocam, te preenchem
pensamentos alheios
mas eles não são teus;
queres ir para casa,
Tua casa não há mais.
José, e agora?

E se você gritasse,
E se revoltasse
Se você mostrasse
o poder que tem,
o poder de cem,
que virassem mil,
se você tentasse...
Mas você não tenta,
você tem medo, José!

Eis que de repente
Tudo isso acaba
E você levanta
Grito na garganta
Vai partir pra luta
Mas então escuta
Que ao sair pra a rua
Pra marchar sozinho
Encontra milhares 
Juntos no caminho
Somos os teus pares
José, para onde?

(por silvio teixeira)

quarta-feira, 15 de maio de 2013

O Justiceiro


Ainda não era noite quando Daniel parou na sinaleira daquela movimentada avenida. Era a terceira sinaleira seguida que fechava justo quando ele chegava. Certo que alguém estava de sacanagem com ele. Depois de um dia de cão só o que ele queria era chegar em casa e tirar o dia de cima das costas, mas o sinal contava os segundos vagarosamente. Ele semicerrou os olhos para a luz vermelha que deveria piscar a intervalos regulares e para o digital do relógio que marcava os segundos em busca de uma discrepância, mas o sinal decidiu abrir antes de chegar a uma conclusão.

Uma esquina adiante e uma confusão parecia se formar e ao se aproximar percebeu o dono de um automóvel aos berros e correndo em direção a um lugar que Daniel ainda não identificara mas junto a rodovia que ele mesmo seguia. Parou ao lado do motorista corredor que então desistia da carreira de maratonista:

- O que foi? – Perguntou ao homem
- Uns filha da puta ladrãozinho bagaceiro, pegaram meu estepe quando eu ia trocar o pneu do carro. Ladrãozinho chinelo, Roubar estepe tem de ser bem chinelo..
- Capaz!! Mas pegaram assim no mais?
- Pegaram, um pegou e subiu na moto com o outro, e sairam varado, nem deu pra ver o rosto do ordinário que tavam de capacete. Filhos duma cadela!
- Que merdão! E tu tem como fazer agora com o pneu que furou?
- Tenho... Eu vou ligar pro meu mecânico e ele dá um jeito pra mim, não dá nada. Só a filhadaputice mesmo...
- Precisa que alguma coisa eu te dou uma força ai...
- Não, obrigado, aqui eu me ajeito, fazer o que... Nessas horas não passa um puto dum policial.
- Pior... Bom, boa sorte ai – Disse Daniel e se foi adiante. Era um absurdo que isso acontecesse. Covardia direto. Ah se ele pegasse um cara destes. Cagava a pau com toda certeza. “Com a raiva que to do dia se eu acho um cara destes hoje eu matava...” pensou

Seja por brincadeira de alguém lá de cima, destino ou coincidência, quatro esquinas depois Daniel percebeu uma moto que saia de um posto de gasolina. O piloto de capacete preto não permitia que se viesse o rosto, mas o carona é que fez Daniel abrir um sorrisão, pois carregava meio que desajeitadamente um pneu de automóvel a tiracolo, com roda e tudo. Daniel acelerou o carro e logo emparelhou com a motocicleta fechando-a e obrigado-os a frear fortemente o que levou a moto ao chão. Neste tempo Daniel saiu aos berros de dentro do carro:

- É polícia vagabundo! Solta essa merda ai! – Naturalmente que “polícia” neste caso era mera força de expressão, mas os meliantes não sabiam disso. Então voou para cima do piloto, que tomou o primeiro chute entre as costelas e um soco no capacete que doeu mais na mão que no rapaz. Enquanto isso o carona fazia menção de levantar quando Daniel voou novamente começando a bater de socos no capacete antes que ele tivesse tempo de reagir, em verdade não parecia que ele tentaria, já que o rapaz tentava tão somente se defender.

Daniel virou novamente apenas para ver que o piloto fugia “em pernas” e já se encontrava longe, então voltou sua furia para o que ficou.

“- Vagabundo! Marginal! Isso é para aprender a não ser ladrão!”
“-Não tio! Não!” Gritava o rapaz a cada mata-gato que tomava
“Não é o caralho, safado de merda! Agora é não né?” E vapt no rapaz, e mais uma e mais outra.

Vendo que o rapaz não esboçava maior reação e já com a mão virada em um rocambole de bater no capacete, Daniel pegou o estepe e girou para longe. Tinha certeza de que eles não iriam mais pegar. Decidiu ir embora. Já era demais por uma noite. Estava estressado, cansado e agora com as mãos machucadas, e aqueles ali pensariam duas vezes antes de roubar novamente.

“- E ai que eu saiba que roubaram uma calota que seja novamente. Te boto a apodrecer na cadeira! Vaza!”
“- Mas tio, o pai...”
“- Agora acha de chamar papaizinho! Não tem pai nem meio pai... Vaza vagabundo.”

O rapaz não esperou uma segunda possibilidade e tão rápido quanto conseguia seguiu o caminho que o nariz apontava deixando ainda uma das havainas para trás.

Daniel entrou no carro. Deu um suspiro de alivio e girou a chave. Em casa ainda ia ter que dar explicação para a mulher de porque tinha chegado atrasado e ainda com a roupa naquele estado, mas fizera o que tinha de fazer. Estava cansado de ver a omissão sobrepujar as decisões e pesar na balança para o lado dos meliantes. Ao menos por uma noite havia feito justiça. Dormiria dolorido, mas em paz...

Cerca de uma hora antes, em uma rua alguns quarteirões dali...

“- Filho, presta atenção. O pai precisa que tu leve este estepe lá no borracheiro que tem no posto de gasolina. Já chamei o beto que vem de moto ai, tu leva lá conserta e traz o pneu aqui que o pai fica esperando tá...



* História baseada em fatos reais. Os nomes foram preservados para garantir a integridade dos eventuais envolvidos

quinta-feira, 9 de maio de 2013


O Assalto
Carla tinha passado um dia tão corrido que nem saberia dizer de onde ele apareceu.

Seus pensamentos ainda estavam no trabalho e os olhos se mantinham dispersos entre os diversos objetos da rua: carros, calçada, buraco, placas, pessoas... Tudo estava ali mas ao mesmo tempo era como se não estivesse, e ela seguia caminhando em modo automático sem se dar conta necessariamente de cada coisa. Só desceu à Terra quando ele a abordou:
- Com licença...
De imediato ela abandonou seu universo paralelo e tomou consciência do todo. A rua não era completamente escura e ainda havia movimento, principalmente dos carros na avenida, mas ela sabia que era um bairro perigoso, poucos dias atrás dois colegas foram assaltados ali perto. No entanto quem se aproximara não parecia um ladrão, não se vestia mal e a interrompera com um “com licença”. Que tipo de ladrão pediria licença para assaltar?
- A senhora me perdoe, mas infelizmente isto é um assalto. Preciso que me passe sua bolsa e seus pertences de valores. Sei que isso deve ser bem chato, mas não se preocupe, não pretendo fazer mal algum a senhora, apenas preciso do que tiver de valor, pode ser?
Uma borboleta começou a bater asas no seu estômago. Ela franziu o olhar para ver melhor quem estava a sua frente. Seria uma brincadeira? Ela conheceria aquele homem?
- Como?
Ao se ouvir Carla pensou que deveria ter algo melhor para dizer do que “como?”, mas a situação beirava o grotesco. Era um assalto mesmo? Ela não lembrava conhecer aquela pessoa, e ele não parecia estar brincando, mas tampouco tinha um ar ameaçador, também havia o fato de que não havia mostrado qualquer tipo de arma, apenas a abordou e falou com ela, como quem pergunta as horas.
- Pode me passar a bolsa? É importante que seja rápido.-Reforçou o ladrão- Eu sei que deve estar estranhando, acho que não tenho uma atitude que se espera de um ladrão. De fato não gostaria de estar assaltando, mas realmente estou precisando e não tenho uma outra maneira para o momento.
- Você está brincando não? É um assalto mesmo? Você nem está armado!
- Eu tenho uma arma aqui – disse apontando para a mão que ficava no bolso mas sem mostrar qualquer objeto -  Apenas acho que isso não é necessário, como disse, não quero te machucar nem nada, você é uma boa pessoa, apenas teve azar hoje.
- Olha se é uma brincadeira eu não achei graça, e dá licença que estou atrasada – disse e pensou em se afastar, mas foi levemente segura pelo braço enquanto o homem puxava a arma que realmente estava no bolso.
- Não existe mais confiança nas pessoas hoje em dia, não? Ok, está aqui a arma. É boa para você moça? Por favor, eu realmente não quero te machucar mas você vai me entender se acabar me obrigando a isto. Estou tentando fazer da melhor maneira possivel. Porque preciso gritar e bater? Não seria muito pior? Para que dar um tiro na pessoa? Por causa de uma carteira, um celular, algumas bobagens? Isso é assim tão importante a ponto de valer o risco?
Carla congelou com a presença da arma, percebeu que o assunto era realmente sério, e tratou de cooperar para evitar que a “cortezia” do ladrão de repente terminasse.
- Desculpa, eu não quero causar qualquer problema, tome leve minha bolsa.
- Não, capaz! Não quero tudo, só preciso do que for de valor. A não ser que seja uma Louis Vuitton – disse ele com um sorriso de quem sabia o que estava dizendo para nova surpresa da moça
Ela vasculha a bolsa, pega um celular, passa para ele, pega um segundo celular e entrega também, pega um terceiro celular, movendo agora a surpresa para o ladrão
- Três celulares? Desculpe a pergunta, mas porque três?
- É que eu uso este aqui – aponta para um modelo mais simples- apenas para falar com minha mãe, por causa do desconto da operadora. Esse na verdade é da empresa, a gente recebe um para falar com as filiais, e este é o meu de uso normal mesmo.
- Entendi, bem, eu levo o seu e o da empresa também, mas pode ficar com este outro.
A mulher recolhe o celular um tanto perplexa com o procedimento, pega a carteira e passa para o ladrão perguntando
- Posso ficar com meus documentos?
- Claro... Tá louca... Fazer documentos tudo de novo, ninguém merece. Pode ficar com o cartão de crédito também. Vou ficar apenas com o dinheiro. Pode me ver este seu relógio também, por favor?
A moça entrega cerca de 200 reais em dinheiro e o relógio, além dos celulares. Procura por algo mais quando o ladrão a questiona.
- Você precisa que te deixe algum para o onibus?
- Eu tenho cartão do onibus – disse e ao mesmo tempo, percebeu o que estava dizendo- Posso ficar com o cartão do ônibus?
O ladrão pensa por um segundo, decidindo se ficaria ou não com o cartão, enfim assentiu
- Pode sim, de toda forma poderia bloquear ele e não me adiantaria nada. É isso, sei que não te adianta muito mas peço desculpas por ter que te levar essas coisas.
- Não, tudo bem, fazer o quê. Não posso dizer que não fico chateada de me assaltar mas enfim, ao menos você foi gentil. Não entendo porque um cara como você faz isto, podia estar trabalhando, não precisa disto...
- Eu tenho lá meus motivos, infelizmente não temos tempo para uma conversa mais demorada
- Sei, tem que assaltar mais gente não? – Disse ela em um misto de ironia e sindrome de estocolmo
Ele sorriu e olhou para ela por um segundo a mais do que o necessário. Apesar de estar à sombra das luminárias centrais, a luz dos faróis denunciou um rosto triste e um par de olhos esmeraldas que ela não esperava encontrar nele.
- Te cuida guria, tenha uma boa noite.
Disse e saiu em passos apressados deixando-a um tanto sem saber o que fazer. Pouco adiantaria ligar para sua mãe agora, contaria quando chegasse em casa. Tinha ao menos que dar parte do roubo mas não fazia a menor ideia onde haveria uma delegacia perto.
Ainda pensava para que lado deveria seguir quando uma segunda figura saiu das sombras, mas diferente da primeira abordagem, esta não parecia nada gentil
- Perdeu tia, passa a bolsa e fica pianinho, se abrir a boca eu te furo – Disse o ladrão, que aparentava não ter mais que 15 anos com uma faca apontada para ela, enquanto agarrava a bolsa puxando-a fortemente. Seja por reflexo ou por não entender exatamente o que estava acontecendo ela fez exatamente o contrário: se pôs a gritar e se grudou a bolsa. O meliante a agarrou pelos cabelos e a empurrou, mas ela não soltava a bolsa e gritava mais alto ainda.
Foi quando uma segunda voz se sobrepôs ao tumulto
- Solta ela vagabundo, solta ou vou te queimar, cai fora!
Ela ainda estava no chão quando percebeu que quem voltara para a ajudar era ninguém menos que o “primeiro” ladrão. O segundo meliante olhou assustado e percebeu a arma apontada para sí, decidiu então procurar uma vítima mais fácil. Decidiu fugir desviando das pessoas, que se aproximavam por conta dos gritos da moça, antes que fosse tarde para ele.
Em torno dela, um pequeno grupo, que se aproximou, tratava de a ajudar a levantar perguntando se estava bem. Ela levantou e olhou em volta buscando encontrar a pessoa que em pouco mais de 5 minutos havia participado de sua vida de maneiras tão opostas. No entanto, seja por conta do receio do que ela pudesse dizer, seja pela presença das outras pessoas, seu pseudo-salvador, antes algoz, se fora.
Dois meses depois ainda era possível ver Carla descendo pela avenida fatídica. Dizem que ela repete este caminho todas as noites, mesmo quando não tem necessidade, mesmo com o risco de assalto naquela área. Cuidadosa olha sempre quem se aproxima, dizem que olha até demais, parece até que está a procura de alguém.
Mas isso é apenas o que dizem...

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Atleta Olímpico


Deuses de aço, 
aço de carne...

São verdadeiros lutadores. Eles lutam contra seus limites, contra os adversários, contra o relógio, contra a falta de apoio e de organização. Quando os vejo no pódio, com sorrisos que não cabem em seus rostos cansados, vejo a glória, a fama e o triunfo. Para os vencedores, as horas de dor foram finalmente recompensadas. Através de seus méritos deixaram para trás todas as dificuldades e atingiram um dos maiores objetivos em sua carreira de atleta: eles vão para as Olimpíadas. Representarão o Pais que vivem, que amam e pelo qual morreriam se preciso fosse num último esforço para consagração máxima.


Mas para que estes chegassem lá, outros, muito outros ficaram pelo caminho.


São homens e mulheres que, assim como os vencedores, lutaram. Seus corpos chegaram aos limites, mas não foi o suficiente. Eles sabiam que precisavam mais. Precisavam ser mais rápidos, mais fortes...


No entanto seus músculos se contraíram em cãibras, o peito queimou como que em chamas e ainda assim eles buscavam mais. Sua visão se fechando em uma escuridão que parecia não ter fim. Sua vida de sofrimento, sua infância pobre passando diante de seus olhos em um slow-motion de explosão e de dor. 

Ele não teria recompensa. 

Sua história não será vista nem ouvida na televisão. Não carregará a bandeira brasileira diante de milhões de observadores. Não terá a chance de mostrar sua gana e sua garra. Ele não vai deixar sua vida sofrida. Sua dor terá apenas consolo entre os seus. Uma esposa ou uma mãe vai estar a lhe esperar na porta da casa humilde, e abraçados irá permitir que o gigante caído se ponha em prantos, que grite, que esbraveje, que questione e que finalmente, cansado e injustiçado, adormeça. 

Amanhã será outro dia.

O anti-herói da carne de aço, voltará a ser garçom, pedreiro, vendedor, mecânico. Daqui a duas semanas as feridas estarão curadas, e então, à noite, enquanto eu volto para casa, vou vê-lo novamente na quadra humilde correndo, arremessando, saltando...

E quando então, tarde da noite, cansado mas recompensado com o resultado obtido, chegar em casa mais uma vez assobiando o Hino da Vitória ele vai contar como fará para guardar a bandeira brasileira durante sua prova para só retira-la no pódio, nas próximas Olimpíadas. 

“- Como o Rubinho fez.” dirá “- Como o Rubinho fez...” 

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Pecado Capital


O pai, sentado à mesa, preenchia as palavras-cruzadas enquanto aguardava o jantar que seria servido tão logo sua esposa terminasse a luta que travava com um frango a passarinho.

“- Capital do Egito, 5 letras, termina com O.” – lê em voz alta o marido, na espera de um socorro divino.

“- Quito.” – Responde a mãe enquanto finalmente vence o frango, por nocaute técnico.

“- Brigado!”

Alguns minutos se passam em um silêncio incriminador, quando inexoravelmente o momento se precipita.

“- Tem alguma coisa errada aqui, deu problema com o “seu” Quito mãe.”-Incriminou o pai, justo quando o frango voava, feito passarinho, para a mesa.
“- Apresentador casado com Angélica é o Luciano Huck não é ?”
“- Quem ?” Questionou a mãe mais preocupada com os dedos que queimavam à bandeja.
“- Aquele narigudo, que tem apresenta o Caldeirão do Huck.”
“- É o Luciano Huck !” Afirmou peremptoriamente a mãe como quem salva o dia.
“- Então Quito não é a capital do Egito; e foi você que disse...”
“- Então não sei...” Conclui a mãe.
“- Cairo...”
O pai e a mãe se olharam procurando no olhar cúmplice do cônjuge , o autor da exclamação feita quase ao acaso. Então os quatro olhos se voltaram para o autor da possível façanha. O filho, Hamilton de 13 anos, nem sequer levantou os olhos e enquanto desenhava alguma coisa no papel.
“- A capital do Egito é Cairo.” – repetiu como que ratificando a sí mesmo.
“- C – A – I – R – O , gooool. Que chutão hein ?” Proferiu o pai “- Como você sabia ?”
“- Sabendo...”

Hamilton nunca fora um garoto muito falante, tirava boas notas na escola, gostava de jogar bola, mas nunca se destacou, passava mais tempo entre seu videogame e computador, navegando pela internet por horas a fio. Mesmo sabendo destes detalhes, as vezes eles pareciam completos estranhos vivendo dentro da mesma casa.

“- E qual é a capital da França ?” Perguntou o pai como se estivesse oferecendo um teste à altura para o filho.
“- Paris né pai, essa todo mundo sabe.”
“- E da Holanda ?”
“- Amsterdã...”
“- Como é que você nunca nos disse que sabe essas coisas ?” Pergunta o pai.
“- Ninguém nunca perguntou...”
“- Vamos comer que a comida não vai esperar pra esfriar gente !” Anunciou a mãe sem perceber o olhar de espanto do pai em direção ao seu garoto.
“- E a capital de Honduras ?”
“- Tegucigalpa...” Respondeu o filho que se encaminhava para a mesa.
 Detestava comer na mesa, gostava mesmo é de fazer as refeições vendo televisão ou lendo, mas sabia que a janta soberbamente preparada não lhe daria qualquer possibilidade de fugir do tradicional.

“- Tegucigalpa ? Isso não é uma cidade do México ?” Questionou a mãe. No entanto aparentemente o pai também não sabia a resposta a sua pergunta pois levantou-se e buscou socorreu no globo terrestre que ficava na estante do quarto do filho.

“- Não é que é mesmo ! Você sabe tudo quanto é capital ?”
“- Quase todas.” Respondeu o filho rapidamente repreendido pela mãe.
“- Não fala de boca cheia guri ! Pai, não vem pra mesa ? Não vai me fazer uma desfeita dessa né ?”

O pai, absorto por entre os continentes, viajava o dedo atravessando os países procurando de um que lhe parecesse impossível de ser conhecido pelo filho. Pensou em perguntar a capital daqueles países no meio da Europa, tão pequeninhos que o nome tinha de ser escrito lá no Pólo Norte. Não, esses, por ser difíceis deviam ser os preferidos do garoto.

“- Qual é a capital de Burkina Fasso ?” desafiou o pai com metade dos olhos por cima do planeta a mirar o filho.

Hamilton pela primeira vez não respondeu de imediato, antes levantou os olhos até os do pai. Uma dúvida talvez ? Talvez apenas procurando descobrir de onde o pai havia retirado o nome incomum daquele país. Encontrou-o atrás do Globo, atrás dos óculos, e sorriu de forma matreira para o pai.

“- Uagadugu !”
“- Mãe, cê viu ? O guri é um gênio!”

A mãe já um pouco chateada por não estar recebendo os parabéns que com certeza havia feito por receber, ostentava uma cara de poucos amigos, mas não deixou barato comentando:“- Puxou a mim, eu também era boa em Geografia no colégio.”

“- Nós tínhamos de levar o guri no Silvio Santos pra responder sobre as capitais dos países em todo mundo. Podíamos ganhar um milhão de reais.”
“- Deixa de besteira e come teu frango. Além do mais o Silvio Santos não tem um programa assim, tinha o Show do Milhão mas nem era sobre uma coisa só, tinha que responder sobre tudo quanto é coisa.”

“- Tem aquele outro do Céu é o Limite, não tem ? O J. Silvestre.” Disse o pai mais por fora que criança em casamento de igreja.
“- Credo em cruz, esse só no outro mundo que já morreu faz tempo. Não tem nenhum mais que faça isso.”
“- Nem nos canais a cabo ?”
“- Não que eu saiba.”
“- Que puxa... Que adianta saber de uma coisa se isso não serve pra nada?” resmungou o pai sem saber como tirar algum proveito de tão incomum descoberta. Na estante um quadro com a foto do casal, tirada quase 14 anos atrás em plena ilhas Bermudas, na viagem de lua-de-mel, onde a mãe decidira o nome que seu primeiro filho teria...

Decidiu finalmente pelear com o jantar, que, conforme as ameaças, já estava ficando frio mesmo.


** Nota: A capital das ilhas Bermudas chama-se Hamilton








quarta-feira, 1 de maio de 2013

A Fotografia



No interior da estação rodoviária, o homem escorado no balcão, toma café puro com suas malas junto aos pés. Olha o relógio enquanto bebe controlando o horário. É estranho como o tempo pode se arrastar ou voar, dependendo de sua necessidade, e naquela manhã ele parecia ter definitivamente parado.

Um menino com roupas surradas aproxima-se com pressa infantil. Ele tem uma fotografia em uma das mãos e uma nota de cinco reais na outra. 

- Tio! Isso aqui é pro senhor!

O menino entrega a fotografia para o homem e se afasta em direção ao balcão


- O que é isto?

O homem ainda perplexo, pega a fotografia um tanto a contragosto, olha para ela e vê a imagem de um garoto com seus 4 anos. Franze o cenho olhando a imagem. Virando-a percebe que há algo escrito nela.

O menino está saindo do bar devorando a segunda parte de um chocolate. A boca rebocada de negro denunciava onde andaria a primeira metade. O homem o vê com o canto do olho e o chama antes mesmo de terminar a leitura:

O menino segue. O homem olha para os lados, olha as pessoas que vem e vão, mas nenhuma parece se importar com a presença dele. Ele volta a olhar a imagem, vira a foto e segue a leitura

O homem olha novamente a foto, franze o cenho mais ainda. Olha com mais atenção. Aos poucos sua expressão vai suavizando surgindo um sorriso muito leve. Passa o dedo pelo rosto do menino. Olha para cima, para o nada, buscando algo em suas memórias.

O homem tem ar pensativo. Pega seu celular, começa a mexer nos nomes da agenda, parando em alguns nomes de mulher. Para um ele balança negativamente a cabeça, em outro ele sorri levemente com ar de saudade. Olha novamente para a fotografia com o mesmo sorriso leve. Seu celular vibra, na tela uma mensagem de sua namorada, para onde ele está viajando faz seu seu semblante fechar novamente, volta a franzir o cenho com ar pensativo e de preocupação. Um filho... Ele sempre pensou em ter um, agora de súbito ele tinha um?

De repente uma mulher se aproxima dele. Ela vem de cabeça levemente abaixada e com ar envergonhado
A mulher pega suavemente a fotografia das mãos do homem que não oferece resistência. Com ar de espanto, de alivio, mas no final de lamento também.

Olha o relógio e percebe que desta vez o tempo acelerou e já está atrasado, toma o ultimo gole de café rápido, junta sua mala e sai apressado. 



domingo, 21 de abril de 2013

Vida de Goleiro








Gilmar...

O pai o batizara com esse nome em homenagem ao grande Gilmar dos Santos Neves, goleiro da seleção brasileira nas copas de 58 e 62.

Quando começou a jogar bola foi para o gol, não como tantos outros goleiros que acabavam nesta posição por serem “ruins de bola”, mas porque era o que ele queria. Corajoso, pegou fama de pegador, pois não titubeava na hora de se atirar nos pés dos atacantes. Nas aulas de educação física era sempre o primeiro a ser escolhido na divisão de times, garantia de tranquilidade na defesa. Seu professor, que também era treinador do principal time de futebol da cidade, logo percebeu o potencial do garoto e o convidou para treinar no Juvenil do Esporte Clube Cerâmica, maior clube da cidade.

O garoto não decepcionou, catava tudo. Se a bola vinha por cima, ele pulava; se vinha por baixo, comia grama; se era forte, espalmava; se era colocada, encaixava. Tinha visão de jogo, lançava com as mãos no meio do campo. Para fazer gol nele não podia chutar direto, e quando tomava um gol não esmorecia, chamava a responsabilidade para si e dava gritos de incentivo para a defesa.

O Cerâmica viveu dias de glória. Apesar de Gilmar estar apenas com 15 anos, já jogava com a equipe Junior em campeonatos amadores estaduais. Quando perguntavam o que pensava do seu futuro a resposta era sempre a mesma:

- Vou ser goleiro do Internacional.

E ninguém duvidava, era só ele ter uma chance que com certeza ele a agarraria, tão fácil quanto as bolas chutadas pelos atacantes.

Então surgiu a oportunidade. A oportunidade única. O velho Abílio, olheiro do Inter de Porto Alegre, iria assistir uma partida do Cerâmica. Não se tinha certeza se ele viera por causa do Gilmar, mas isso não importava, era o velho Abílio dos Reis, o maior descobridor de talentos de todos os tempos. Ele tinha faro pra coisa, um talento natural, bastava ele ver um garoto dar meia dúzia de toques na bola e ele já proferia se o guri ia “dar dos bons”.

A chance não podia ser melhor, afinal o jogo era contra o Treze de Maio, maior rival do Cerâmica, que apesar de não poder contar com o “Pelego”, seu principal atacante, vinha com discurso de que iria arrasar a partida.

O estádio estava lotado, cerca de 300 pessoas se acotovelavam para ver o clássico citadino. Para o velho Abílio, um camarote montado com quatro mesas de dobrar, cortesia da Pizzaria do Gordo.

A primeira Antártica já se despedira quando os times finalmente entraram em campo e lá estava ele, o nome escrito às costas "Gilmar" no uniforme novinho comprado na Paquetá.

Fez o sinal da cruz e olhou pro canto do campo, onde estava seu Abílio. O coração batia no pescoço, era a sua hora e ele não iria deixar que o nervosismo atrapalhasse.

Apita o árbitro, começa a partida. Os primeiros minutos passam de forma lenta, arrastada, os times se respeitam e se estudam. A segunda Antártica estava melhor que a primeira, estupidamente gelada, mais estúpida só se cuspisse na cara da gente.

O Cerâmica domina a partida e, para azar do Gilmar, passa a maior parte do tempo no campo de defesa do Treze, que por algum motivo parecia abdicar do ataque. O Cerâmica domina a partida, mas o gol não sai. Aparentemente todo mundo queria dar um toquinho a mais, mostrar habilidade e fazer um cartaz pro Seu Abílio. Objetividade mesmo, necas; chegavam na cara do gol e tentavam um lençol ou uma bicicleta.

O primeiro tempo se arrastou. O jogo estava tão ruim que o juiz terminou a primeira etapa aos 43 minutos. Tirando algumas bolas recuadas, Gilmar não tivera trabalho nenhum; na verdade, nem o goleiro adversário.

No intervalo, o treinador não apareceu no vestiário, foi conversar com o Seu Abílio, “trocar umas ideias”, ele disse.


Começa o segundo tempo e Gilmar se enche de esperanças, pois além de estar próximo do “camarote” dos olheiros, o Treze voltou com outra disposição, estava baixando a lenha. Aparentemente tinham tomado uma carraspana no intervalo e vinham pra ganhar. “Deixa eles” pensou Gilmar, queria mais é que chutassem todas, para poder mostrar serviço.
Cinco minutos do segundo tempo e o Treze ganha uma falta no bico da área do Cerâmica.

“Droga!”, pensou Gilmar. “Pena que o Pelego não tá em campo, com ele essas faltas vêm no ângulo e eu espalmava de mão trocada.”

Sem o Pelego a bola acabou parando no meio do mato, mato mesmo, pois atrás do muro, três metros adiante da goleira, os maricás cresciam livres.

O tempo ia passando e, apesar de o Treze ter melhorado sensivelmente, os zagueiros do Cerâmica estavam à prova de falhas, querendo mostrar que mereciam uma chance no alvirrubro gaúcho.

Então Gilmar resolveu apelar e enquanto o time atacava chamou o Fernandão, becão “das antiga”, com quase a mesma largura e altura.

- Deixa o cara passar, Fernandão – implorou o Gilmar.
- O quê?
- Deixa o cara passar, eu preciso mostrar serviço, pô!
- Mas aí quem não mostra serviço sou eu! – contestou o beque, surpreendendo com sua lógica simples, mas irrefutável.
- Deixa ele passar que te dou a minha bicicleta!
- Tá louco? Tá de brincadeira?
- Deixa ele passar, é sério, deixa que ela é tua!
- Feito!

Agora vai. Olhou pro canto pra se certificar de que o célebre observador continuava ali e encontrou-o atrás de meia dúzia de faixas azuis, firme, olho de águia, mas com uma cara obviamente entediada.

A merda é que os ataques estavam vindo tudo pela direita, onde não era o Fernandão que marcava, e, como ele só tinha uma bicicleta, não podia fazer mais nada.

Então o ponta-esquerda do Treze foi lançado, veio pra cima do Fernandão que não se fez de rogado, meteu uma perna na frente da outra e se estatelou no chão. Agora era só ele e Deus. Gilmar deu cinco passos pra frente pra fechar o ângulo, girou o pé por sobre o calcanhar para garantir firmeza e flexionou as pernas no ângulo correto, torcia pra que o ponta tentasse encobri-lo, mas podia tentar o drible da vaca também, ele sabia como evitar que acabasse em gol, ele estava preparado, era a sua hora!

Só que o ponta não era o Pelego e não tinha essa habilidade toda, então na risca da grande área meteu o dedão. Não de chapa, não colocada: de bicão mesmo,

e Gilmar pulou.

Pulou e viu o sol,

nem um segundo,

só um instante,

um instante onde se decide a vida e a morte, um instante onde se separa as crianças dos homens. Que queimasse sua vista, que o sol inteiro entrasse em seus olhos, ele era o Gilmar, não tremia na frente de ninguém. Então no auge de seu salto cego pelo brilho do sol ele sentiu o gosto do sucesso, suas mãos seguraram firmes e não soltaram aquela que se oferecia em holocausto para que o jovem goleiro brilhasse mais que a luz do sol, aquela por quem ele tinha tanto carinho, aquela, aquela… chuteira!?

Gilmar, no chão, percebeu que o ponteiro vibrava pela conquista de um gol que ele não viu. Que o ponta era abraçado e que corria agora com apenas uma das chuteiras. Traído pelas forças primárias da natureza, Gilmar acabara por apanhar a chuteira do ponta que escapara quando ele chutou a bola. O estádio era um apupo só de risos e de troça.





Bola ingrata, gente ingrata...





Ele levantou os olhos ainda nublados, meio por causa do sol meio por causa das lágrimas que pediam passagem, levantou-se, juntou a toalha no fundo da goleira e saiu. Assim, sem dizer nada pra ninguém, só foi embora.

O treinador, questionado a fazer alguma coisa, só disse:
- Deixa ele. Deixa ele. – E colocou o goleiro reserva para os últimos cinco minutos que faltavam.

Durante muito tempo não se ouviu mais falar do Gilmar. Depois fiquei sabendo que o pai havia lhe dado uma surra por ter perdido a bicicleta e o colocou no seminário. Dizem que se encontrou no caminho religioso, que era muito feliz e que, nos finais de semana, ajudava o time dos padres a ganhar fama de não perder uma partida sequer nos campeonatos presbiterianos, não faziam gol, mas não tomavam também. Até parece que o goleiro era abençoado.